quinta-feira, 8 de julho de 2010

"Tenha coragem de usar seu próprio entendimento!"

O QUE É A ILUSTRAÇÃO?


A ilustração (Aufklãrung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o própio responsável. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a condução de um outro. O homem é o próprio culpado dessa menoridade quando sua causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de resolução e coragem para usá-lo sem a condução de um outro.
Sapere aude! "Tenha coragem de usar seu próprio entendimento!" - esse é o lema da ilustração).
Preguiça e covardia são as razões pelas quais uma tão grande parcela da humanidade permane- ce na menoridade mesmo depois que a natureza a liberou da condução externa (naturalider maiorennes); e essas são também as razões pelas quais é tão fácil para outros manterem-se como seus guardiões.
É cômodo ser menor. Se tenho um livro que substitui meu entendimento, um diretor espiritual que tem uma consciência por mim, um médico que decide sobre a minha dieta e assim por diante, não preciso me esforçar. Não preciso pensar se puder pagar: outros prontamente assumiram por mim o trabalho penoso. Que a passagem à maioridade seja tida como muito difícil e perigosa pela maior parte da humanidade (e por todo o belo sexo) deve-se a que os guardiões de bom grado se encarregam da sua tutela.
Inicialmente os guardiões domesticam o seu gado, e certificam-se de que essas criaturas plácidas não ousarão dar um único passo sem seus cabrestos: em seguida, os guardiões lhes mostram o perigo que as ameaça caso elas tentem marchar sozinhas, Na verdade, esse perigo não é tão grane Após algumas quedas, as pessoas aprendem a andarem sozinhas. Mas cair uma vez as intimida e comumente as amedronta para as tentativas ulteriores.
É muito difícil para um indivíduo isolado libertar-se da sua menoridade quando ela tornou-se quase a sua natureza (...). Mas que o público se esclareça a si mesmo é muito perfeitamente possível; se lhe for assegurada a liberdade, é quase certo que isso ocorra... Sempre haverá alguns pensadores independentes, mesmo entre os guardiões das grandes massas, que, depois de terem-se libertado da menoridade, disseminarão o espírito de reconhecimento racional tanto de sua própria dignidade quanto da vocação de todo homem para pensar por si mesmo.
Mas note-se que o público, que de inicio foi reduzido à tutela por seus guardiões, obriga-os a permanecer sob jugo, quando é estimulado a se rebelar por guardiões que, eles próprios, são incapazes de qualquer ilustração. Isso mostra quão nocivo é semear preconceitos; mais tarde, voltam-se contra seus autores ou predecessores.
Sendo assim, apenas lentamente o público pode alcançar a ilustração. Talvez a destruição de um despotismo pessoal ou da opressão gananciosa ou tirânica possa ser realizada pela revolução, mas nunca uma verdadeira reforma nas maneiras de pensar.
Enquanto essa reforma não ocorrer, novos preconceitos servirão, tão bem quanto os antigos, para atrelar as grandes massas não-pensantes. Entretanto, nada além da liberdade é necessário à ilustração: na verdade, o que se requer é a mais inofensiva de todas as coisas às quais esse termo pode ser aplicado, ou seja, a liberdade de fazer uso público da própria razão a respeito de tudo (...). A pedra de toque para o estabelecimento do que devem ser as leis de um povo está em saber se o próprio povo poderia ter-se imposto as leis em questão (...). O que o povo não pode decretar para si próprio muito menos pode ser decretado por um monarca, pois a autoridade legislativa deste último baseia-se em que ele une a vontade pública geral na sua própria.
A ele incumbe zelar para que todas as melhorias, verdadeiras ou presumidas, sejam compatíveis com a ordem civil; fazendo isso, ele pode deixar aos súditos que busquem eles próprios o que lhes parece necessário à salvação de suas almas.



(I. Kant, "O que é a ilustração". In Régis C. Andrade. Kant, a liberdade. O indivíduo e a república. in F. Weffort (org). Os clássicos da política, v. 2, p. 83-85.)





Nenhum comentário:

Postar um comentário